20/02/2013 - Semprerio.com
Escrito por Paulo Pacini
O transporte ferroviário foi, sem dúvida alguma, uma das tecnologias mais revolucionárias introduzidas durante o século XIX, e que, por sua vez, induziu grandes transformações na própria indústria, assim como nos hábitos de deslocamento e no desenvolvimento das cidades. Nessas, as ferrovias metamorfosearam-se em uma modalidade única de transporte urbano, a qual, após as primeiras tentativas, se estabeleceu como principal meio de locomoção durante o século XIX e até meados do seguinte: o bonde.
Nessa época, o Brasil não era um país arredio a investimentos estrangeiros, e as novidades que representassem algum progresso para o bem geral eram rapidamente adotadas, sem barreiras alfandegárias absurdas e obstáculos de todo tipo, como exigência de índice de nacionalização, burocracia excessiva, dezenas de impostos e suborno generalizado, só para citar alguns dos componentes do famigerado "custo Brasil".
Modelo do primeiro tipo de bonde a circular no Rio e no Brasil, em 1859. O carro
da empresa de Thomas Cochrane, ligando o Centro à Tijuca, era fechado e sua
aparência lembrava as diligências de então.
Imbuído de espírito progressista, um médico homeopata inglês residente no Rio, Thomas Cochrane, solicitou e recebeu a primeira concessão para construção de uma ferrovia no país, entre Rio e São Paulo, em junho de 1839. Não conseguindo capital necessário, Cochrane vendeu a concessão ao governo em 1855. Apesar desse revés, considerava que o investimento em transporte sobre trilhos continuava sendo excelente opção, o que o levou, em 1856, a obter nova concessão, dessa vez para o transporte de passageiros por bondes desde o centro até a Tijuca.
Com o dinheiro da venda da concessão da ferrovia ao governo formou a empresa Cia. De Carris de Ferro da Cidade à Tijuca, iniciando as obras em 1857. O serviço principiou em janeiro de 1859, tornando o Brasil o quinto país no mundo a possuir um transporte desse tipo, atrás sómente dos EUA, França, Chile e México. O imperador D. Pedro II inaugurou oficialmente a linha em março do mesmo ano, a qual tinha um percurso de 7 quilômetros. Os carros eram de tipo fechado, como em outros países. O sistema, contudo, não funcionou muito bem, e seu fraco desempenho levou à venda da concessão ao Barão de Mauá em 1861, que ainda tentou o uso da tração a vapor, sem muito sucesso. As atividades foram suspensas em 1866.
A linha dos bondes da Tijuca não era a única concessão que Mauá possuía, entretanto, pois havia adquirido em 1862 uma outra, ligando o Centro ao Jardim Botânico. Desejava desenvolver o projeto, mas, por falta de investidores, ressabiados com o fracasso da linha da Tijuca, teve de o colocar em compasso de espera. Entrementes, no outro hemisfério, mais precisamente em Nova York, o engenheiro-chefe e gerente de uma empresa de bondes, Charles B. Greenough, ouvira falar das iniciativas de Mauá no Rio de Janeiro, e decidiu vir aqui verificar as possibilidades de construir um sistema de bondes nessa cidade. Ao constatar as potencialidades locais, comprou sem hesitação a concessão de Mauá, e, com o apoio de vários acionistas e 500 mil dólares (enorme quantia na época), fundou a Botanical Garden Railroad Company, com sede em Nova York. Após a oficialização, os trabalhos aconteceram rápidamente, e a primeira linha foi inaugurada, com a presença do Imperador, em 9 de outubro de 1868, indo da rua Gonçalves Dias até o Largo do Machado. O sucesso foi total, e pouco tempo depois o serviço já alcançava Botafogo.
Bonde fechado da empresa Botanical Garden na Praça José de Alencar, no Catete
em 1875, em foto de Marc Ferrez. O veículo foi um dos primeiros a chegar, mas
o calor carioca fez com que fosse susbtituído pelos tipos abertos. Ao fundo, o
Hotel dos Estrangeiros.
Os primeiros veículos, construídos na empresa John Stephenson, de Nova York, eram diferentes da imagem tradicional dos bondes presente no imaginário popular, com bancos em platéia e pessoas no estribo. Eram veículos fechados, e, na verdade, o pequeno estribo só servia para o ingresso. O calor infernal da terra, contudo, tornou os veículos inadequados, e, em 1870 já chegavam os carros abertos, os quais definiram um padrão que continuou nos 100 anos seguintes, até 1962-3.
Hoje em dia, em vários países, o transporte por bondes é a modalidade que mais cresce, tendo sido um aliado indispensável em projetos de revitalização de centros urbanos, onde a melhoria da qualidade de vida é atingida principalmente pela abolição ou restrição do tráfego automobilístico, criação de grandes espaços exclusivos para pedestres, acessíveis por transporte coletivo, como metrô e bondes, e também por ciclovias. Ao contrário do que a maioria aqui imagina, vítima de concepções ultrapassadas repetidas por uma mídia que ignora completamente o que acontece pelo mundo, os bondes são o que há de mais atual, e as cidades que os incorporaram, como dezenas na Europa, possuem os melhores índices de qualidade de vida.
Seria necessária uma reversão completa na postura governamental e coletiva para que o espírito de inovação nessa área pudesse receber novo alento, tal como ocorreu há 150 anos, quando os bondes revolucionaram o transporte urbano brasileiro. Seria também preciso contrariar interesses poderosos, pois para eles a situação atual é o melhor dos mundos, tais como a indústria automobilística e as empresas de ônibus, para os quais a variável "qualidade de vida da população" simplesmente não existe, pois não diz respeito a seus lucros. A única arma que dispomos é a conscientização e a escolha de representantes que possam levar adiante aquilo que realmente interessa a todos, além de uma postura firme na defesa dos próprios interesses.
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