13/01/2015 - O Globo
MARCUS FAUSTINI
O valor histórico-cultural de Santa Teresa, alguns celebram por seu lugar de região nobre na história da cidade, outros pela ideia de ser um bairro artístico, boêmio e de turismo. Legítimas, essas duas formas de pensar o bairro e de colocá-lo no imaginário carioca tornam, por vezes, invisível uma outra característica sua. Com mais de uma dezena de favelas no entorno — gosto de chamar de Complexo de Santa Teresa —, deve ser pensado também como um bairro popular. E o bonde, com tarifas baratas e gratuidades na viagem em pé, foi decisivo para o direito de circulação desses moradores.
Muitas narrativas colocam essas comunidades como um problema de Santa Teresa, algo que afetaria sua identidade nostálgica. Longe disso, apesar de durante anos sofrerem com a ausência de direitos básicos, elas constituem a formação vibrante da vida de rua do bairro — o que traz encantamento de uma juventude de outros países, fazendo de Santa mais do que passeio, uma plataforma de chegada à cidade.
Pensar o transporte público com o recorte na vida comunitária de uma região ajuda na capacidade de uma cidade produzir soluções para a diminuição das desigualdades. Uma das possibilidades de superação da indignação com as atuais condições do sistema de transporte público em nossa metrópole é começar a pensá-lo a partir das necessidades — forma de vida e criação de oportunidades para o direito à cidade — de quem vive naquela região. Hoje, o transporte é pensado apenas a partir das necessidades do mundo do trabalho e da circulação de capital. Mas isso já se demonstra insuficiente para contribuir no desenvolvimento da qualidade de vida das pessoas e da saúde das cidades. Para que haja uma atualização contemporânea dos bondes é preciso que eles estejam envolvidos pela ideia de direito à cidade e não de sua espetacularização — aspecto que parece predominar nos negócios de turismo por aqui. A experiência não controlada, livre para as escolhas de direções, traz vínculos fortes de sujeitos com uma cidade, inventando novas trajetórias.
Andei de bonde desde os 16 anos de idade, quando comecei a frequentar Santa Teresa como um abrigo. Envolvido com a vida de militância estudantil e dos grupos culturais e mergulhado em salas de cinema, bibliotecas e pequenos empregos, acabei conhecendo, nesse ambiente, alguns jovens moradores de Santa Teresa que ofereciam a casa para dormir, sabendo que, em dias de atividades até a noite, era difícil minha volta para a casa de meus pais, no Cesarão, em Santa Cruz, ou para a casa de meus avós, no Jacarezinho. O primeiro aprendizado que tive do saudoso Artur, um desses amigos, era que pegar o bonde em pé saía grátis e ainda era vibrante embarcar com ele em baixa velocidade. No percurso, moradores interagiam, e não era incomum ver o maquinista se relacionar com os passageiros quase como um familiar deles — outro elemento importante do sentido popular desse transporte, essa sua capacidade de aproximação entre quem usa, sendo um forte vetor de estímulo de segurança coletiva da vida no bairro.
Decidi virar morador de Santa Teresa, anos depois, no começo dos anos 2000, marcado por essa experiência e pelas condições que o bairro oferecia para artistas populares — aluguéis mais em conta e formas coletivas de moradia. Ali, vi o Cine Santa nascer como um cineclube numa das igrejas do bairro, confirmando a vocação comunitária e empreendedora da região. Foi de carona num bonde que vi Valquíria Oliveira chegar de noiva para celebrar nossa união como casal. Uma alegria desmedida que nenhum simulacro publicitário conseguirá capturar e reproduzir, ao usar o bairro como cenário.
No bonde, vi os primeiros anos do bloco Céu na Terra, que desfilou com integrantes da banda dentro dele. Talvez, agora, com a cidade que caminha para a disciplina do mundo do espetáculo, essas possibilidades precisariam de pedido de autorização ou até de pagamento para o uso. Não é à toa que muitos moradores e organizações acompanham com lupa as obras do bonde. Apesar do sucateamento de anos, foi a dimensão de agregamento comunitário que o fez resistir — dos rápidos mutirões espontâneos para consertar algum imprevisto na linha até um simples bom dia no seu interior entre passageiros. A permanência dele também foi fruto da luta de moradores organizados ao longo dos últimos 30 anos.
Não proponho aqui a ideia de não reconhecer que era necessária uma renovação da frota, mas ela não pode ser usada para uma mudança de identidade que favoreça apenas o turismo. É possível um caminho que aposte na abertura do bairro para visitantes, mas que assegure os direitos de seus moradores. Isso passa por assegurar a identidade popular do bonde, com tarifas baratas — e por que não com as gratuidades?
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